Fundamentos Filosóficos para uma Historiografia Ancestral

"Não tenho acesso a mim mesmo a não ser compreendendo de novo a visada do ancestral, 
e não posso compreendê-la a não ser instituindo-a como sentido atual de minha vida."
Paul Ricoeur

Em função de poder compreender o sentido da historicidade de si mesmo, importa a recorrência ao caráter ancestral. Assim é que se pode descobrir a própria significação de sua historicidade para a história desse ensaio que é a humanidade, a experiência humana no mundo.

Foi assim que Edmund Husserl, ao procurar pensar a significação da sua historicidade em crise, fala do espírito ancestral europeu e de sua tarefa, dizendo: "Este gênero de elucidação da história, pelo qual retornamos para interrogar a fundação original (die Urstiftung) das metas que ligam a cadeia das gerações por vir..., essa elucidação, insisto, não é senão a autêntica tomada de consciência, pela filosofia, do termo verdadeiro do seu querer, proveniente do querer, e enquanto querer, de seus ancestrais espirituais" (HUSSERL apud RICOEUR, 2009[1949], p. 34). A crise na compreensão de nossa historicidade não nos conduz também a uma tarefa semelhante, isto é: interrogar a fundação original das metas que ligam as cadeias das gerações por vir ao querer proveniente do querer de seus ancestrais espirituais?

Ao interpretar esta citação de Husserl, Paul Ricoeur assegura que: "Descobrindo uma origem (Ursprung), uma protofundação (Urstiftung) que seja também um projeto no homem do futuro, uma fundação final (Endstiftung), posso então saber quem sou eu." (RICOEUR, 2006[1949], p. 34). É claro que é muito importante considerar que, quando Husserl, e Ricouer em sua interpretação, falam de uma protofundação e de um projeto de humanidade que se retoma na experiência da compreensão histórica de si, eles tem em vista  o espírito filosófico forjado na grécia e difundido na Europa. Falam, portanto do espírito ancestral filosófico-científico da Europa, que, certamente, não é a única raiz fundacional da qual nós brasileiros dependemos, ainda que esta seja uma das mais fundamentais; há raízes mais profundas que foram escondidas sob diversos sedimentos de preconceitos que precisam ser superados, e contra os quais se deve lutar. O primeiro deles é o de considerar a origem espiritual de nossa geração unicamente em sua matriz ocidental greco-romana, de caráter estritamente filosófico-científico. O segundo é considerar morta e às vezes até a-histórica, porque não-escrita, as raízes dos povos nativos de nossa terra e dos povos advindos da grande África. O terceiro implica a consideração da história brasileira unicamente no contexto dos quinhentos anos de colonização, sob o pretexto, que tem por base o desconhecimento, de que não é possível reconstituir o passado histórico dos povos primitivos, já que não nos deixaram nada escrito. Outros tantos preconceitos se fundam nesses, mas é importante refletir sobre esse querer pensar no passado mais remoto (ancestral), próprio de nossa geração. Nesse querer não podemos ouvir a voz "espiritual" ancestral de nossos antepassados, que clama por uma luta contra esses preconceitos?

É possível que sim. Como o próprio Ricoeur assegura: "Este caráter histórico da compreensão de si é manifesto quando está ligada à luta contra o preconceito; ora, tem sempre o preconceito uma significação histórica; ele é ancestral antes de ser pueril; é da ordem do 'sedimentário'." (RICOEUR, 2009[1949], p. 34). Aqui, preconceito não deve ser somente entendido no sentido negativo, no qual comumente utilizamos a palavra. Preconceito é antes de tudo um concepção prévia forjada na história, de modo que acaba por se tornar uma obviedade. E "tudo aquilo que é uma obviedade (Selbstverständlichkeit) constitui 'o solo (Boden) de todo trabalho privado e a-histórico'." (RICOEUR, 2009[1949], p. 34). Contudo, é importante pensarmos no que Ricoeur nos lembra: o fato de que "não posso libertar-me de uma história já passada, sedimentada, a não ser me ligando de novo ao sentido 'enterrado' (verborgene) sob as 'sedimentações', fazendo-o de novo presente, presentificando-o" (RICOEUR, 2009[1949], P. 34-35). Isto é, somente atendo-nos aos sedimentos, deslocando-os, destruindo-os, libertamo-nos para nossa historicidade mais própria, libertando a nossa própria história e o próprio passado da estaticidade em que é considerado pela historiografia. Segundo Ricoeur, ao solapar esses fundamentos, recuperamos a nossa história em sua própria finalidade para a humanidade, apreendendo "com um só gesto", nesse ater-se destruidor ao que está sedimentado, "a unidade teleológica da história e a profundidade da interioridade" (RICOEUR, 2009[1949], p. 35). 

Considero certo, porém, que em nosso tempo, mais do que falar teleologicamente da história, devemos ater-nos ao fato de ela poder promover mobilizações diversas nos caminhos históricos que a humanidade percorre e tem de percorrer. Não se trata de um caminho único em que a meta é buscada, nem simplesmente de aspectos da constituição de uma interioridade psíquica ou espiritual. A compreensão de mim mesmo e dos meus é uma compreensão de meu ser todo e do ser da humanidade em seus ensaios históricos. E é só assim que é certo dizer que: "Não tenho acesso a mim mesmo a não ser compreendendo de novo a visada do ancestral, e não posso compreendê-la a não ser instituindo-a como sentido atual de minha vida." (RICOEUR, 2009[1949], p. 35).

Ricoeur acrescenta que é "a este processo" que "Husserl dá o nome de Selbstbesinnung" (RICOEUR, 2009[1949], p. 35-36), isto é, fornecer para si mesmo um significação de si mesmo, que não pode se constituir senão num retorno crítico à significação histórica que lhe pertence ou que lhe foi conferida pela tradição e cuja retomada de seus vestígios exige um novo posicionamento.

Assim, se para Husserl e Ricoeur, que são europeus, essa história ancestral passa fundamentalmente pela filosofia e sua história, para nós brasileiros ela ainda não é suficiente, ainda que seja também fundamental. A história ancestral e seu espírito exigem a recoleta de vestígios de um ethos que pode estar aquém da experiência filosófica européia, mas vai além dela na medida em que diz respeito a modos da conduta humana e de seu caráter que nossos ancestrais experimentaram e que nós de algum modo as vivemos ou somos chamados a viver, na medida em que os possamos conhecer e compreender. Assim, do mesmo modo que para Husserl "a Europa pode se tornar 'sempre mais estranha à sua própria significação' ou 'renascer do espírito da filosofia graças a um heroísmo da razão'"(RICOEUR, 2009[1949], p. 56), para nós brasileiros, o Brasil pode se tornar sempre mais estranho à sua própria significação, ou renascer do espírito de seu próprio ethos miscigenado em contatos, lutas e acordos, graças a um esforço do pensamento "arqueológico" que perfaz o esforço de compreensão de seus dos "testemunhos dos primeiros viajantes e invasores" do "Novo Mundo", dos "cientistas sociais", "antropólogos", "etnólogos" e "literatas", que aqui no Brasil não têm merecido o título de filósofos. Arqueologia não significa aqui simplesmente a ciência empírica dos vestígios do passado, mas acima de tudo o esforço de pensamento para pensar a significação histórica do ethos de nossos antepassados a partir desses vestígios e do que nos contaram a respeito deles.

REFERÊNCIAS
RICOEUR, Paul (2009[1949]). Na Escola da Fenomenologia. trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2009.


Editado por Gilfranco Lucena dos Santos, em 03 de abril de 2011.


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