sexta-feira, 13 de maio de 2011

Abolição da Escravatura ou Início do Processo Abolicionista?

"Acabar com a escravidão não nos basta;
é preciso destruir a obra da escravidão."
Joaquim Nabuco

Várias vezes ouvi dizer que a abolição da escravatura levada a cabo no seu primeiro momento pela proclamação da Lei Áurea através da pena manuseada por Princesa Isabel foi uma espécie de farsa. Mas quem lê Joaquim Nabuco percebe o quanto era urgente um ato de caneta, ao mesmo tempo que percebe que o Abolicionismo apenas começara pela abolição à caneta; pois do mesmo modo que a escravidão e o sistema que a mantinha durou três penosos séculos, após a proclamação da Lei Áurea, estamos apenas no fim do primeiro terço do movimento abolicionista que se instaurara no Brasil, e que necessita ainda continuar a exercer seus efeitos libertadores. Tornamo-nos nós de fato livres, descendentes dos nossos ancestrais africanos, escravizados e macerados nessas terras? Pois somos de fato todos descendentes de nossos ancestrais africanos: "... o nosso povo é isso mesmo, é um povo de pés no chão e mangas de camisa, e não é um povo branco." (NABUCO, 2010, p. 166). É preciso estar consciente de que "essa escravidão maldita", que durou tanto tempo em nossas terras, não é somente "o fratricídio de uma raça", mas fundamentalmente "o parricídio de uma nação" (NABUCO, 2010, p. 159). Não estamos ainda totalmente livres dos efeitos maléficos desse "terrível azorrague", que "não açoitou somente as costas do homem negro", como também "macerou as carnes de um povo todo" (NABUCO, 2010, p. 68).

Depois de trezentos miseráveis anos de escravidão, e após somente cem anos do começo da abolição, é preciso continuar o Processo Abolilcionista. Ele está apenas começando. Levantar a bandeira do "Abaixo à Escravidão!", nela inscrita como um "brado de civillização" (NABUCO, 2010, p. 119), deve continuar a ser o ato genuíno de todo brasileiro. Não podemos compreender um brasileiro que não queira integrar o movimento abolicionista. E "... enquanto houver um escravo no Brasil nós, abolicionistas, devemos trazer em nossos corações o luto da pátria..." (NABUCO, 2010, p. 147). E, aliás, devemos ainda continuar o nosso luto, por "cada vida humana passada do berço ao túmulo em cativeiro... cada açoite sofrido por não trabalhar a contento de outrem... cada criança morta por se ter impedido a mãe de aleitá-la... cada mulher violada em seu pudor... cada pecúlio de lágrimas... cada família dispersa para sempre do Norte ao Sul nesta Sibéria tão implacável... cada morte por maus-tratos e perseguição diária... cada suicídio por excesso de sofrimentos... cada crime para trocar o cativeiro pelas galés... cada indivíduo explorado minuto por minuto em suas aptidões, sua saúde, e até em sua dedicação e seu amor..." (NABUCO, 2010, p. 191). Nosso luto não pode ter ainda acabado sabendo que em nossa história vivemos 300 anos desta quantidade imensa de maldades e mortes...

Joaquim Nabuco assegurou em 1886: "... o imperador não pode estimar que se fale muito em escravidão. Eu, por exemplo, há oito anos quase não me ocupo de outra coisa, e assim reduzi minha inteligência, errática por natureza, não felizmente a fixar-se nessa idéia única, porque isso a teria morto num cárcere, mas a nada produzir que não tivesse relação imediata e direta com a enfermidade orgânica do país, o seu mal incurável. Quem é homem de letras avalia bem esse sacrifício de concentrar as 'faculdades criadoras' do pensamento em uma obra exclusiva, da qual se começa por fazer uma religião e se acaba tendo por fazer uma vida. Eu, porém, não fiz da abolição uma coisa, e não estou fazendo outra, por prazer, nem por vocação de apóstolo, mas por dever, obedecendo ao simples imperativo categórico da minha nacionalidade, ao fato unicamente de ser brasileiro; e como eu há tantos!" (NABUCO, 2010, p. 182-183). Não estamos tão longe da escravidão e seus efeitos para não precisarmos mais nos tornar abolicionistas. Essa marca trágica de nossa história ancestral praticamente nos obriga por dever a manter em vigor o processo abolicionista que apenas começou em seu ponto de viração quando a 7 de maio de 1888 um novo ministério apresentava-se diante da Câmara dos Deputados do Brasil e em 13 de maio de 1888, há exatos 123 anos "a abolição é aprovada pelo Parlamento do Império e sancionada pela regente" princesa Isabel (MELLO in NABUCO, 2010, p. 13). 

O estabelecimento da Lei é apenas um ponto de viração, a partir do qual ventos de revolta, luta e engajamento buscam conduzir um povo inteiro a um estado de humanidade mais elevado do que a brutalidade anterior na qual estava imersa. Com a lei Área não acabou a escravidão, nem o movimento quilombola e abolicionista encontrou aquilo pelo que lutaram: eles apenas conseguiram estabelecer, para toda a nação, a conduta moral anti-escravista e libertadora que a nação inteira tinha agora por dever manter. Pois devemos manter viva, em nome de nossos ancestrais, que "Nenhum povo pode ser grande sem ser livre, feliz sem ser justo, unido sem ser igual." (NABUCO, 2010, p. 145).

REFERÊNCIAS

NABUCO, Joaquim. Essencial Joaquim Nabuco. Organização e introdução de Evaldo Cabral de Mello. São Paulo: Penguin Classics, Comapanhia das Letras, 2010.



domingo, 1 de maio de 2011

Sepultura - Itsari


Produzido com a Comunidade Xavante, Aldeia Pimentel Barbosa, Mato Grosso, Brasil

Os testemunhos de Jean de Léry asseguram que os Tupinambás eram grandes admiradores do canto, da música e da dança. Acompanhemos um desses seus testemunhos:

"... Certos intérpretes normandos, há muito residentes no país, disseram-me que os nossos tupinambás costumavam reunir-se com grande solenidade de três em três ou de quatro em quatro anos; achei-me por acaso em uma dessas reuniões e eis o que me foi dado observar.
Certa vez ao percorrermos o país, eu, outro francês chamado Tiago Rousseau e um intérprete, dormimos uma noite na aldeia de Cotina; pela madrugada, ao retomarmos a marcha, vimos chegarem de todos os lados os selvagens das vizinhanças, os quais foram reunir-se em número de quinhentos a seiscentos numa grande praça. Paramos então e voltamos para saber o objetivo da assembléia; nisto os silvícolas se separaram sùbitamente em três bandos. Os homens recolheram-se a uma casa, as mulheres entraram noutras e as crianças numa terceira. Como vi dez ou doze caraíbas [pajés ou feiticeiros] entre êles, suspeitei algum acontecimento extraordinário e convenci meus companheiros a permanecerem ali até averiguá-lo.
Antes de se separarem das mulheres e meninos, os caraíbas proibiram severamente de sair das casas em que se encontravam; aí também nos encerraram. Já havíamos começado a almoçar sem nada perceber ainda do que pretendiam os selvagens quando principiamos a ouvir na casa dos homens, a qual distava talvez trinta passos daquela em que estávamos, um murmúrio surdo de rezas; imediatamente as mulheres, em número de quase duzentas, se puseram tôdas de pé e muito perto uma das outras. Os homens pouco a pouco erguiam a voz e os ouvíamos distintamente repetir uma interjeição de encorajamento: - He, he, he, he. (Esses cantos, perfeitamente autênticos, eram conhecidos de todos os brasileiros e constituíam uma espécie de ritual familiar). Mais ainda nos espantamos, porém, quando as mulheres, por seu turno, a repetiram com voz trêmula: - He, he, he, he, [Léry insere aqui uma pequena partitura do tom, melodia e ritmo em que os tupinambás entoavam sua interjeição de encorajamento He].
Assim aconteceu durante um quarto de hora...