terça-feira, 19 de abril de 2011

Aprendendo com o jeito de ser Tupinambá

No dia dedicado aos antigos povos que habitaram a terra da Ybyrapytã (arabutã, madeira rubra, pau-brasil) nada melhor do que recordar certos traços fundamentais de seu caráter, de seu jeito de ser e ver a vida. Vejamos a autonomia e maturidade dos antigos Tupinambás, através da leitura de alguns trechos do livro de Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil.

O livro de Léry é importantíssimo para uma caracterização bastante ampla dos traços de caráter e da conduta dos Tupinambás. Já a primeira caracterização de Léry dos Tupinambás é de impressionar nos aspectos positivos que se mostram. Para eles, os “chamados Tupinambás” entre os quais residiu “durante quase um ano” e com os quais tratou “familiarmente, não são maiores nem mais gordos que os europeus; são porém mais fortes, ma[i]s robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeito a moléstias” (LÉRY, p. 97). Esta é a primeira caracterização física positiva que Léry enxerga nos Tupinambás. O corpo dos Tupinambás se mostra em sua força, robustez e saúde. Léry continua destacando a longevidade dos Tupinambás, dizendo que muitos deles chegam a 120 anos e acentuando uma característica corpórea que me chamou a atenção pelo fato de Léry atrelá-la a um aspecto do caráter dos Tupinambás: diz que por mais que muitos alcancem uma idade tão avançada, em sua velhice não se mostram “os cabelos brancos ou grisalhos, o que demonstra não só o clima da terra... mas ainda que pouco se preocupam com as coisas deste mundo” (LÉRY, p. 97). Léry revela que os Tupinambás não manifestam em sua vida silvícola as preocupações características que ele nota nos citadinos: aos Tupinambás não advêm as perturbações oriundas da “desconfiança” e da “avareza”, dos “processos e intrigas”, da “inveja” e da “ambição” e assegura: “Nada disso tudo os inquieta e menos ainda os apaixona e domina” (ibidem).  Estes são de fato traços do caráter extremamente positivos para a saúde do corpo e do psiquismo; é curioso que Léry os enxergue nos Tupinambás, e é importante que os tenhamos em vista na busca de requisitar os vestígios deixados por nossos antepassados. Que um povo viva sem desconfiança, avareza, processos, intrigas, inveja e ambição é um fenômeno que no mínimo deve nos chamar a atenção e até encher de espanto. O que os fazia assim? Retornam em nós, seus remanescentes, ao menos de modo escondido, os traços vivos desse caráter? Ou fomos tomados pela doentia cultura citadina que nos faz mergulhar em todos esses rudes sentimentos até que nos afoguemos todo neles? Como os Tupinambás conseguiam se ver livres da inquietude desses sentimentos? Como não se deixavam encher de paixão por esses sentimentos e como estavam imunes de serem dominados por tais sentimentos? Como esta imunidade se mantinha tão viva em seu caráter e como suas relações na lida com as coisas de seu mundo o no trato com os outros impedia que tais sentimentos viessem à tona? Procuremos ver se o restante das caracterizações de Léry nos podem apresentar respostas correspondentes a esse inquérito.
A)     Nudez sem Vergonha

Léry descreve com espanto a nudez dos Tupinambás. “Coisa não menos estranha e difícil de crer, para os que não os viram”, diz ele como quem falasse para nós próprios os pósteros que não viram nem hão de ver os Tupinambás, “é que andam todos, homens, mulheres e crianças, nus como ao saírem do ventre materno” (LÉRY, p. 98). E assegura ainda outra falta (stéresis) no jeito de sentir-se próprio dos Tupinambás, de modo não menos digno de espanto, pois esses nossos ancestrais “não só não ocultam nenhuma parte do corpo, mas ainda não dão o menor sinal de pudor ou vergonha” (LÉRY, p. 98). Vivendo nus, todos, não estavam sujeitos a sentir pudor ou vergonha por causa disso. Sentiam-se livres desses sentimentos estando nus. Este fenômeno é também curioso, mesmo para nós, seus remanescentes, os que não os vimos e não os haveremos de ver. Tem esse fenômeno algo a nos dizer?

B)     Irreligiosidade e Utopia
Um aspecto curioso, que do meu ponto de vista revela uma maturidade humana extremamente elevada presente na mentalidade dos Tupinambás, é o caráter de irreligiosidade ou mesmo ateísmo própria dos Tupinambás. Léry afirma tacitamente que os Tupinambás “não adoram quaisquer divindades terrestres ou celestes” (LÉRY, p. 175). Léry torna claro com essa afirmação um caráter próprio da experiência religiosa que ele não via presente nos Tupinambás: o caráter da adoração a uma ou mais divindades. Ora, ele não fala simplesmente da ausência de uma crença monoteísta deste povo, mas mesmo da inexistência de qualquer sentimento de adoração a divindades, celeste ou terrestre, por parte dos Tupinambás. A maturidade no que diz respeito à crença em deuses se revela de maneira ainda mais clara quando julgam, em uma determinada conversa que tiveram com Léry, o desvalio do próprio deus a quem o calvinista prega. Sendo extremamente temerosos do trovão, como um fenômeno natural que os aterrorizava, pois, como testemunha Léry, “quando ouvem o trovão são levados por uma força irresistível a temê-lo” (LÉRY, p. 179), um Tupinambá manifesta com veemência que se este deus criou o trovão, não valia nada. De fato,  Léry nos fornece o seguinte testemunho: “E quando ribombava o trovão e nos valíamos da oportunidade para afirmar-lhes que era Deus quem assim fazia tremer o céu e a terra a fim de mostrar sua grandeza e seu poder, logo respondiam que se precisava intimidar-nos não valia nada” (LÉRY, p. 176, grifo meu). É muito importante pensar nesta sentença. Ela revela primeiro: 1) o sentimento do temor pelo trovão, a quem chamavam Tupã; 2) revela em segundo lugar como o Tupinambá considerava mau este sentimento, a ponto de considerar alguém que dele se utilizasse como quem não vale nada; 3) a busca de compreensão parte da experiência fática própria, sem dar vazões a uma compreensão alheia que lhes parecesse ingênua ou, até mesmo, falsa. De fato a crença naquele alguém mítico de quem falava o nobre calvinista, exigia um compromisso deste deus para com os sentimentos mais humanos de que os Tupinambás tinham plena consciência. O mesmo acontecia quando diante de uma forte tribulação por que se viam sempre aterrorizados, eles prometiam crer nesse deus anunciado pelo calvinista francês, desde que pudesse afastar deles o maldito mateiro que lhes aterrorizava o ânimo. Léry interpreta-o como o diabo, e expõe que os Tupinambás acreditavam que “as almas dos covardes vão ter com Ainhã [gênio mal], o nome do diabo, que as atormenta sem cessar” (LÉRY, p. 177). A esta exposição Léry acrescenta o seguinte: “Cumpre notar que essa pobre gente é afligida durante a vida por esse espírito maligno a que também chamam Kaagerre [o morador do mato, o mateiro, o silvestre]” (LÉRY, p. 177); mas uma interpretação mais fina, talvez de caráter mais psicológico ou psicanalítico, pode levar a uma caracterização mais precisa dessa situação de terror na qual se viam mantidos vez por outra os Tupinambás. Pode-se compreender o Ainhã como um ânimo maligno e perturbador, talvez personificado sob esse nome Kaagerre como o morador do mato.
Esse sentimento de mundo dos Tupinambás é curioso e, a meu ver, extremamente maduro. Eles acreditavam que “depois da morte”, aqueles “que viveram dentro das normas consideradas certas, que são as de matarem e comerem muitos inimigos, vão para além das altas montanhas dançar em lindos jardins com as almas dos seus avós” (LÉRY, p. 177). Quando falo de maturidade, não falo do preceito em si, que me parece um exagero de Léry, mas da expectativa dos Tupinambás. Longe de mim acreditar que pudesse parecer madura uma gente que tivesse por único preceito de vida plena matar e comer seus inimigos, exceto, talvez, se recordarmos que em situação de extremo desespero e luta em defesa da vida de seus concidadãos, este lema a que Léry chama preceito pode ser muito comum, ainda que me pareça extremamente danoso do ponto de vista humano. Verdade, porém, é que segundo Léry, o motivo fundamental era vingança, e não propriamente defesa da própria vida. Será que poderíamos acrescentar aqui a hipótese de que um dos motivos fundamentais fosse um encorajamento à luta pela sobrevivência. O que não posso perder de vista é a esperança dos Tupinambás: viver para além das altas montanhas, a dançar em lindos jardins na companhia de seus antepassados. Este elemento de maturidade não é percebido em geral. Mas para entender o sentimento Tupinambá e em função de que pareciam insistir tanto na luta contra os inimigos no horizonte da antropofagia, é preciso ter em conta o caráter da luta pela sobrevivência em suas terras e da esperança que possuíam, ainda que certamente dever-se-á considerar o sentimento de vingança atestado por Léry, como motivo expresso pelos próprios Tupinambás. Vale lembrar que não é o mesmo de uma luta pela dominação, muito própria de civilizações imperialistas, mas pela salvaguarda de sua própria vida, especialmente à época ameaçadora da colonização, que pode ter acirrado os conflitos motivados pela vingança contra os inimigos. Importa lembrar que quando da visita de Jean de Léry já se haviam passados mais de cinquenta anos do processo de invasão e colonização, que certamente fez acender ou mesmo reacender e acirrar as possíveis inimizades já existentes entre os povos dessa terra, certamente como fruto de uma luta pela sobrevivência. Espero não estar sendo ingênuo com essa caracterização, mas é preciso fazer um estudo mais aprofundado dos motivos das inimizades então existentes à época da convivência de Léry com os Tupinambás. É preciso tentar perceber melhor quem eram considerados inimigos pelos Tupinambás e por que eram assim considerados. Vejo que a descrição de Léry não fornece dados suficientes para responder a essa questão, mas, talvez, pode apontar pistas para possíveis hipóteses. É preciso de fato buscar os motivos das ocasionais condutas antropofágicas, difícil de compreender por nossa cultura contemporânea. Mas trata-se de uma questão que não pode ficar de fora.
C)     Escuta ao dizer alheio
Há uma curiosa disposição do caráter: Léry assegura mais de uma vez que “os selvagens não costumam interromper os discursos de ninguém; por isso me ouviram atentos pelo espaço de meia hora proferindo apenas de quando em quando sua habitual interjeição: Teh.” (LÉRY, p. 187).  Isso nos revela que os Tupinambás mostravam-se extremamente curiosos e atentos. Essa disposição do caráter é fundamental para perceber o sentimento de respeito pela alteridade que tinham os Tupinambás. Ouvir o outro é de fato uma característica fundamental da existência humana que se mantém aberta ao outro.

domingo, 17 de abril de 2011

Historiografia Ancestral, Historicidade e Fecundidade da Memória

"... uma tradição ... é... o poder de esquecer as origens e de dar ao passado, não uma sobrevida, que é a forma hipócrita do esquecimento, mas sim uma nova vida, que é a forma nobre da memória."
Maurice Merleau-Ponty

A cultura tem um poder: o de retomar o que tem sido e se tornar advento criador da experiência livre de um trabalho humano, onde vigoram suas origens mais ancestrais. Pode a Historiografia chegar a instaurar essa mesma possibilidade? Será que podemos de fato falar de uma Historiografia Ancestral, que em vez de ser a simples coleta museológica de fatos do passado, faça acordar o presente para uma reconciliação pela compreensão com as origens ancestrais que pulsam em suas veias? Qual seria a diferença fundamental entre uma Historiografia Oficial, difundida, aceita e celebrada em um país, e uma Historiografia Ancestral? É uma mera consideração e exposição de outros fatos que não são trabalhados pela Historiografia Oficial?

É com certa desconfiança que a tradição filosófica pós-hegeliana vê a Historiografia como possibilidade de pensar e considerar o propriamente histórico da existência humana, o componente de sua verdadeira existência ética. De fato, já Hegel criticara em sua Fenomenologia do Espírito a postura mais comum ao labor historiográfico que se reduz à mera transmissão dos fatos do passado e suas obras, que são meros frutos de um trabalho verdadeiramente vivo e ativo da existência humana. Para Hegel, a ação do trabalho historiográfico se tornaria muitas vezes puramente exterior, na medida em que este labor se constituiria apenas no "agir externo que limpa esses frutos [que o destino nos entrega] de algumas gotas de chuva ou grãos de areia; em lugar dos elementos da efetividade do ético que os rodeia, engendra e vivifica, constrói uma prolixa armação dos elementos mortos da existência externa - da linguagem, do histórico etc. - não para adentrá-los, experimentando-lhes a vida, mas somente para representá-los dentro de si" (HEGEL, (1973 [1807], p. 415). Desse modo, a Historiografia não promoveria a autêntica "recordação do espírito", a qual implicaria em um verdadeiro reviver no íntimo (Er-innerung) a vida ética da existência no próprio lida atual. 

Nessa mesma direção, mas talvez aprofundando-a e superando-a de certo modo, a Filosofia Existencial de Sören Kierkegaard deixará de falar dessa tentativa de recuperação da memória do passado pela vida, e passará a tornar decisivo na Filosofia o conceito de re-petição ou retomada (Gjentagelsen em dinamarquês, ou Wiederholung de acordo com a versão alemã do termo). Na verdade o termo parece implicar muito mais o sentido de revisão ou melhor ainda colocar em dia o que já foi visto ou mais propriamente vivido. Trata-se de atualizar-se, colocar em dia o que de algum modo nos escapou. Penso que este é o sentido mais apropriado da expressão. Kierkegaard assevera que o conceito de repetição ou retomada "é uma expressão decisiva para aquilo que para os gregos era a 'recordação'." E acrescenta: "Como eles nomeadamente ensinavam que todo conhecimento é recordação, a nova filosofia ensinará que toda filosofia é uma retomada" (ou repetição, revisão, colocação em dia do que de algum modo já se deu, mas nos passou despercebido) (KIERKEGAARD, 2000, p. 3). Atualizar-se e colocar-se em dia com os acontecimentos no presente é justamente o que chamamos de recuperar-se em sua historicidade. Será que podemos esperar isso de uma Historiografia Ancestral? 

É possível declarar que Hegel tinha razão em sua crítica à historiografia. Após Kierkegaard, que o faz de modo implícito, tanto Friedrich Nietzsche quanto Martin Heidegger, ainda que de maneiras diferentes, mas de modo explícito procurarão aprofundar essa mesma crítica (cf. NIETZSCHE, 1994, p. 154-242; HEIDEGGER, 2001, 392-404). Frei Carlos Mesters resume de maneira simples os motivos dessa crítica:

A influência da mentalidade científica, aplicada na investigação histórica, levou os historiadores a buscarem uma precisão maior na descrição dos contornos exatos e materiais dos fatos do passado. Ora, quem começa a estudar o seu passado coloca esse passado diante de si, como algo distinto de si mesmo. Ele toma uma certa distância para poder observá-lo. Psicologicamente, surge assim uma separação entre aquele que estuda o passado e o passado que é estudado. Surge, na pessoa que faz esse estudo, uma distinção entre o presente e o passado. O passado torna-se objeto de investigação, é objetivado, e se distingue do sujeito que o investiga e ao qual pertence o passado. (MESTERS, 1999, p. 48-49)

Ora, a objetivação do passado operada pela historiografia leva a um distanciamento que torna de fato impossível pensar a historicidade da existência. Uma Historiografia Ancestral precisa ter em conta esse problema da objetivação do passado, se pretende justamente levar a existência a recuperar-se em sua historicidade.

Assim, importa elaborar o seguinte problema, com base na epígrafe desta postagem: como dar ao passado, através da Historiografia Ancestral, não uma sobrevida, que é a forma hipócrita do esquecimento, mas sim uma nova vida, que é a forma nobre da memória? 

Uma primeira coisa deve ser dita: Uma Historiografia Ancestral que pretenda superar esse problema no Brasil, não pode simplesmente equivaler-se ao método da Historiografia Oficial. A mera coleta dos fatos do passado dos povos nativos errantes, dos nautas arremessados e dos africanos escravizados e exilados nestas terras e a mera exposição dos mesmos no presente é insuficiente para uma autêntica Historiografia Ancestral.

Merleau-Ponty diz que "Husserl empregou o belo termo Stiftung - fundação ou estabelecimento - para designar... sobretudo a fecundidade dos produtos da cultura que continuam a valer depois de seu aparecimento e abrem um campo de pesquisas em que revivem perpetuamente" (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 90). Ora, a fundação ou estabelecimento da cultura por um povo é o elemento vital no qual vive o próprio antepassado. A cultura não é um conjunto de elementos mortos; é a expressão da vida vivida e do trabalho de um povo que se enraiza no passado e se projeta no futuro.

Sítio Xique-Xique IV - Seridó-RN

"Os primeiros desenhos nas paredes das cavernas", tais como a pintura acima e as muitas presentes nos diversos sítios rupestres em todo o Nordeste do Brasil, "apresentavam o mundo como 'por pintar' ou 'por desenhar', chamavam um futuro indefinido da pintura, e é isso que faz com que nos falem e com que lhes respondamos por metáforas em que colaboraram conosco" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 91). Este chamamento de um futuro indefinido se recolhe nos vestígios do passado e se refletem em nossa atualidade. daí que a interpretação de si como histórico implica a retomada dos vestígios do passado, mas justamente na medida em que se pode perseguir os reflexos na experiência de quem os recolhe no presente. Retomada e repercussão dos vestígios do passado no presente projetivo, ativo e atualizador, é o primeiro momento de uma Historiografia Ancestral que não pretenda esquecer sua Historicidade em jogo. Fala em nós do passado algo que clama por uma reapropriação da vida, e da qual o presente se mantém esquecido? Como se restabelece esse elemento? Como tornar transparente para si mesmo o elemento de filiação e herança próprios de um pensamento e sentimento ancestrais? Através de quem esta filiação se mostra no presente? A quem recorrer para compreendê-lo?

É preciso recuperar a memória. Este é um caminho. Pois há na memória uma fecundidade. Como dizia ainda o Teólogo e Hermenêuta Carlos Mesters: "A memória conserva o passado não como coisa do passado, mas como força viva e ativa que faz o presente caminhar para o futuro. O verdadeiro passado não ficou no passado. Está nos alicerces do presente, atrás dos olhos que hoje enfrentam o futuro" (MESTERS, 1991, p. 160-161).

REFERÊNCIAS

HEGEL, G. W. F. Phenomenologie des Geistes.

HEIDEGGER, M. Sein und Zeit.

KIERKEGAARD, S. Die Wiederholung.

MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito.

MESTERS, C. Flor sem Defesa.

MESTERS, C. Por trás das Palavras.

NIETZSCHE, F. Von Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

A Resistência Uetacá

Em um primeiro momento de recolha de alguns vestígios de povos antepassados, resolvi apresentar aqui a figura de um povo, nem sempre difundida, que não cedeu aos processos de colonização. Quando estudamos História do Brasil na escola, nem sempre aprendemos que o processo de invasão e colonização não foi um processo pacífico e, por outro lado, também não somos levados ao conhecimento de que alguns povos nunca admitiram contato com o estrangeiro europeu, e por isso foram caracterizados como bárbaros e ferozes. Isto é o que se deixa atestar pela descrição de Jean de Léry: um calvinista francês que, tendo vindo ao Brasil e vivido entre os Tupinambás no litoral do estado que hoje chamamos Rio de Janeiro, região do Rio Guanabara para os Tupinambás, escreveu-nos um relato de sua viagem e sua estadia de um ano entre os Tupinambás. Ele esteve no Brasil em 1557, e publicou seu livro Viagem à Terra do Brasil em 1578 na França,  livro que foi reeditado por Paul Gaffarel na França em 1878. Aproveito a oportunidade para registrar meu sincero agradecimento à Biblioteca do Colégio Estadual Santa Bernadete, que foi muito gentil em ceder-me um exemplar do livro de Léry para a minha pesquisa.
Os Uetacá, que viviam entre às margens do Rio Paraíba do Sul e do Rio Macaé, são descritos por Jean de Léry como “índios tão ferozes que não podem viver em paz com os outros e se acham sempre em guerra aberta, não só contra os vizinhos, mas ainda contra todos os estrangeiros” (LÉRY, 1967 [1578,1878], p. 70). Vale salientar que, nesta época (1557) os Margaiá (ou Tupiniquins) já haviam se aliado aos Potugueses, e os Tupinambás (que chamavam os portugueses de Perô-angaipá, que significa portugueses maus,, ruins, desalmados, cruéis) tinham se tornado aliados dos Franceses. Jean de Léry não atenta para a situação circunstancial dos Uetacá quando os caracteriza como ferozes e fala de sua impossibilidade de viver em paz com seus vizinhos. Não podemos garantir, mas é possível conjecturar que a inimizade com os vizinhos (se é que havia antes da invasão e colonização européia) pode muito bem ter se acirrado em função das alianças estabelecidas pelos Tupinambás e pelos Margaiás. Sua ferocidade é certamente muito mais um signo de resistência do que de barbarismo selvagem, como Léry apresentou.
Jean de Léry acrescenta, de maneira mais detalhada ainda,  ampliando sua descrição, que:

Quando apertados e perseguidos por seus inimigos, os quais entretanto, nunca os puderam vencer ou domar, correm tão rápidos a pé que não só escapam da morte como apanham na carreira certos animais silvestres, veados e corsas. Andam nus como todos os brasileiros e usam cabelos compridos e pendentes até as nádegas (LÉRY, 1967 [1578,1878], p. 70).
  
          Jean de Léry diz serem os “Uetacá invencíveis nessa região” e também praticantes da antropofagia, e acrescenta ainda que eram “donos de uma linguagem que seus vizinhos não entendem” (LÉRY, 1967, p. 70). Léry procura em sua descrição retratar os Uetacá como “os mais cruéis e terríveis” que se podiam encontrar por essas terras. Chama-os de “diabólicos” e caracteriza sua antropofagia dizendo que são “comedores de carne humana, como cães e lobos” (LÉRY, 1967, p. 70), parecendo também referir-se aos Uetacá quando mais à frente em uma comparação refere-se “à maneira dos selvagens guaitaká[1], que mastigam e engolem a carne crua” (LÉRY, 1967, p. 82). É preciso, porém, colocar entre parênteses essa descrição, uma vez que, diante das circunstâncias do início da colonização, isso que está sendo chamado de conduta terrível, diabólica, cruel, animalesca e indomável, pode ser muito mais, na verdade, um signo da resistência dos Uetacá, que não se deixaram enganar e dominar, ainda que a antropofagia ritual seja um costume dos povos nativos dessas nossas terras ancestrais, a maneira grotesca apresentada pelos Uetacá pode exprimir uma revolta violenta diante da situação em que se encontram.
            Em notas do livro de Jean de Léry, Plínio Ayrosa caracteriza os Uetacá como um povo que foi considerado famoso “pela rusticidade de costumes e pela crueldade com que tratavam seus inimigos” (AYROSA, in LÉRY, 1967, p. 70, nota 118), insistindo que a conduta que tornou os Uetacá famosos entre os invasores era aquela que estes chamavam de “crueldade”. Em que sentido histórico-contextual, porém, esta “crueldade” pôde ser caracterizada não é algo que venha à tona na mente dos invasores. Parece que nunca conseguiram se questionar: Por que os Uetacá estão se mostrando perante nós tão cruelmente? Foram eles sempre assim? Será que essa crueldade não era também uma conduta circunstancial da experiência de vida dos Uetacá? Certamente essa pergunta tende a ficar sem resposta. Ninguém sabia sua língua, ao que parece, pela descrição de Léry, nem mesmo os povos seus vizinhos. Como conquistar a autêntica auto-interpretação de sua vida fática sem poder comunicar-se com eles? Eles não permitiram aproximação estranha. Os motivos ficaram calados no silêncio histórico sobre seus motivos. Será possível pelo menos pensa-los de outro modo, isto é, como signo de resistência? Designar a experiência dos Uetacá como sinal de resistência é uma outra possibilidade de auto-interpretação de nossa historicidade ancestral.
            Plínio Ayrosa oferece-nos outras indicações a respeito dos Uetacá. Diz que eles “eram de avantajada estatura e muito destros no manejo do arco” e que, “do ponto de vista linguístico, ao lado de várias outras tribos, são incluídos no grupo – Línguas Isoladas” (AYROSA, in LÉRY, 1967, n. 118, p. 70).

REFERÊNCIAS

LÉRY, Jean de [1967 (1578, 1878)]. Viagem à terra do Brasil, trad. Sérgio Millet. 4 ed. São Paulo: Martins, 1967.




[1] De fato, de acordo com o “Esquema da situação geográfica das grandes ‘nações’ tupi-guaranis do litoral brasileiro desde a barra do rio São Francisco à baía da Cananéia em meados do séc. XVI”, Plínio Ayrosa apresenta como nomenclatura sinonímica de Uetaká, também os termos Guataká e Guaitaká (cf. AYROSA, in LÉRY, p. 263)

terça-feira, 5 de abril de 2011

Encontro, Resistência e Luta: o Começo do Brasil


CHEGANÇA
Antônio Carlos da Nóbrega

Sou Pataxó, Xavante, Cariri
Yanomami, sou Tupi,
Guarani, sou Carajá,
Sou Pankararu,
Carijó, Tupinajé,
Potiguar, sou Caeté,
Ful-ni-ô, Tupinambá.

Depois que os mares dividiram os continentes,
Quis ver terras diferentes
Eu pensei: “vou procurar
Um mundo novo
Lá depois do horizonte,
Levo a rede balançante
Pra no sol me espriguiçar”

Eu atraquei
num porto muito seguro,
céu azul, paz e ar puro...
botei as pernas pro ar.
Logo sonhei
que estava no paraíso,
onde nem era preciso
dormir para se sonhar.

Mas de repente
me acordei com a surpresa
uma esquadra portuguesa
veio na praia atracar.
Da grande-nau
um branco de barba escura,
vestindo uma armadura
me apontou pra me pegar.

E assustado
dei um pulo lá da rede,
pressenti a fome, a sede,
eu pensei: “vão me acabar”.
Me levantei de borduna já na mão.
Ai, senti no coração,
o Brasil vai começar!


Criei a estrofe abaixo, para cantar alternativamente como refrão, levando em conta outros povos ancestrais:

Sou Caripó, Corema, Janduí,
Otsukaiana, Panatí,
Sou Icó, sou Aruá,
Sou Tarairiú,
Sou Pegas, Sou Canindé,
Uetacá, Baturité,
Quixelô, Sou Margaiá.


Levando em conta a visão de Antônio Carlos da Nóbrega, expressa nesse poema e música em ritmo de "Caboclinho", vejo que no termo Chegança encontramos um conceito adequado para o evento de começo da Terra que passou a ser chamada Brasil. Primeiro chegaram os povos da rede e da caça, do arco e da flecha... que despertaram do repouso em que viviam para o encontro e o confronto com o invasor posteriormente chegante... Esse poema dá o que pensar...

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Etnicamente só se pode falar de Ensaios de Humanidade

"Na verdade nunca houve humanidade... 
Nós estamos fazendo os ensaios do que será a humanidade... Nunca houve."
Milton Santos

Na reflexão sobre os Fundamentos Filosóficos de uma Historiografia Ancestral, pudemos ver com Paul Ricoeur como Husserl procura elaborar sua alternativa para o que ele à época chamava de Crise da Humanidade Européia e da Ciência Européia. É manifestamente curiosa essa expressão de Husserl. Nele certamente emerge a consciência daquilo que Milton Santos elaborou ao dizer que estamos apenas a fazer ensaios do que será a Humanidade. Isto é, não há uma Humanidade como um fenômeno universal. A Humanidade é um acontecimento étnico. É isso o que permitiu Husserl falar não de uma crise da humanidade universal, mas de uma crise da Humanidade Européia. A Humanidade se constitui assim: em ensaios históricos do que ela pode se propor a projetar para si mesma, etnicamente. A visão da Humanidade que emerge na consciência e na cultura de um povo é sempre um horizonte a ser assumido e projetado. Somente esse acontecimento pode constituir as diversas mobilizações da História da Humanidade. Aquele que pretenda pensar uma Historiografia Ancestral não pode deixar passar despercebido esse fato: a Humanidade não é um conceito universal, mas uma experiência singular!

Motivos Pessoais do Interesse em uma Historiografia Ancestral

Resguardando seus vestígios, por seu caráter poiético, a existência faz História ao dar testemunho de sua história. Para se poder, de algum modo, legar os vestígios para a Saga de uma Família é preciso essa compreensão.

As gerações de meus antepassados mais remotos, dos meus ancestrais do passado e de meus familiares mais contemporâneos, viveram à margens dos afluentes da Bacia do Rio Piranhas-Açu. Minha Mãe nasceu às margens do Riacho dos Cavalos, em Catolé do Rocha-PB, no Sítio São José. Meu Pai nasceu às margens do Rio Sabugi, em São João do Sabugi-RN. Eu nasci no Sertão do Seridó, na cidade de Caicó-RN, às margens do Rio Seridó. Fui criado no Sertão do Espinharas, em Patos-PB, a "Morada do Sol" no Vale do Rio Espinharas, onde nasceram meus três irmãos.

Meu Avô Paterno, Seu Biró, era agricultor, e meu Avô Materno, Seu Chico Filinto, era sanfoneiro. Minha Avós Paterna e Materna, respectivamente Maria das Dores e Sebastiana, eram donas de casa. Conheci meus Bisavós Paternos, pais de minha Avó Paterna: Patrocina Eulina (Madrinha) e Joaquim Matias (Padrinho). Cresci ouvindo dizer que Madrinha era Neta de Índio. Por outro lado, meu Bisavô Paterno, pai de meu Avô Paterno, Seu Manoel Flor, era chamado de "Cabôco Brabo" (Caboclo Bravo). Isso me diz que muito provavelmente meus ancestrais são todos descendentes dos Tarairius, povos "tapuias" (inimigos dos Tupis), que habitaram nas terras seridoenses, antes que o Sertão do Seridó fosse invadido pelos invasores luso-descendentes que, segundo pesquisas de José Augusto (1954) teriam vindo de Igarassu-PE e Goiana-PE, além de outros vindos da Paraíba no séc. XVII (cf. AUGUSTO, 1954, p. 10).

De acordo com o pesquisador potiguar Hélder Alexandre Medeiros de Macêdo, a interpelação "Cabôco Brabo" ou Cabôca Braba" é um sinal da ascendência das famílias de origem "tapuia" que sobreviveram após as "Guerras dos Bárbaros". Segundo ele, foi como Caboclo Brabo ou Cabocla Braba que "ficaram conhecidos na memória familiar os índios e índias que sobreviveram à dizimação durante as Guerras dos Bárbaros (1683-1725) ou à escravidão em épocas posteriores a essas", assegura o nobre historiador, doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em seu artigo "Caboclas Brabas: História Indígena do Sertão do Seridó por meio da memória de seus moradores" (Comunicação feita no X Encontro Nacional de História Oral - Testemunhos: História e Política, realizado no Recife, de 26 a 30 de abril de 2010, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE).

O Prof. Hélder acrescenta ainda que estes Caboclos e Caboclas Brab@s, "escondidos nos pés de serra ou nas suas chãs e homiziados nas furnas e grotas, fugindo a todo tempo do alastramento da fronteira pastorícia, foram literalmente caçados pelos conquistadores, que, montados em cavalos e com a ajuda de cães de caça, domaram a sua brabeza." Certamente devo dizer que não foram domados, porque não eram animais, mas certamente tiveram de buscar formas de não serem subjugados à crueldade dos colonizadores, e tentaram conquistar formas pacíficas de convivência, ainda que possivelmente injustas, para poder sobreviverem. 

Para mim pareceu extremamente importante e digno de interesse outro fato, que a mim parece extremamente curioso e relevante: ele diz que "Ainda que existam alguns relatos de caboclos-brabos (SOARES & PEREIRA, 2000, p 17-8;21), a maior incidência de histórias de família coletadas dentre as memórias individuais dos seridoenses recai sobre a presença de caboclas como tronco genealógico ancestral". Este fato é para mim relevante porque, de acordo com Tia Luzia, irmã de meu Avô Paterno Seu Biró, em conversa que tive com ela e mais duas de suas irmãs (Tia Nenê e Madrinha Flor) no dia 16 de outubro de 2002, fora da minha Trisavó Florência Flor da Silva (Parteira), que viera o sobrenome "Flor" aplicado a toda a família. Esses dois indicadores de que meu Bisavô Paterno Manuel Lourenço da Silva (Seu Manuel Flor) era chamado de "Cabôco Brabo", e sua mãe, que era parteira, minha Trisavó Paterna, Florência Flor da Silva, fora a Cabocla Brava que concedera o sobrenome Flor como tronco genealógico ancestral de toda a Família, concedem-me boas "provas" de minha ancestralidade "tapuia".

Esses elementos constituem para mim motivos fundamentalmente pessoais do meu engajamento por uma Historiografia Ancestral.

REFERÊNCIAS

AUGUSTO, José. Seridó. vol. I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954.

MACÊDO, Hélder A. M. de. Caboclas Brabas: História Indígena do Sertão do Seridó por meio da memória de seus moradores, in Anais do X Encontro Nacional de História Oral - Testemunhos: História e Política. Recife: 2010.

Problema de Método para a Historiografia dos Povos Nativos da Terra Brasilis

Como superar a visão lusitana, holandesa e franco-germânica em uma perspectiva que recupere as raízes das culturas nativas e seus valores ancestrais? Trata-se da aquisição de um método de descrição investigativa, através do qual:

1) é preciso evitar a utilização genérica do termo “índio” ou “povos indígenas” aplicado aos diversos povos da Terra Brasilis

2) é preciso evitar o termo “negros” ou “escravos africanos” para referir-se aos membros de diversos povos tirados á força de suas terras e escravizado nessas terras; 

3) é preciso evitar o termo “brancos” para referir-se às etnias europeias que invadiram os territórios dos povos da Terra Brasilis, colonizaram ou exterminaram os nativos e pouco depois escravizaram por longos 300 anos os africanos; 

4) é preciso tentar superar alguns aspectos da interpretação euro-cristã das atitudes dos nativos;

Nessa busca e retomada da historicidade brasileira em suas origens estamos implicados já, porém, pela cultura e pela língua de origem eurocêntrica, para além da qual não se pode falar. Assim, essa retomada já é sempre miscigenada. Não constituiremos qualquer purismo nessa tentativa, mas quereremos ressaltar apenas aspectos das singularidades dos povos e etnias, e manter a atenção voltada para essas singularidades de seu ethos.
Não chamarei de caráter (tropos), mas de conduta (ethos) as características que os povos primitivos de nossa Terra esboçaram aos invasores, uma vez que o termo caráter traduz aspectos considerados mais estáveis do que o termo conduta, que exprime os aspectos mais circunstanciais de uma ação. Assim, importa pensar as atitudes próprias das ações dos nossos povos primitivos frente aos invasores à época da colonização, às quais são descritas por estes últimos, como conduta, e não propriamente como caráter, uma vez que elas se constituem em circunstâncias específicas de ação, que não precisam, necessariamente, serem consideradas de caráter permanente e estável. É claro que estas condutas podem também revelar traços do caráter a serem pensados, porém, em uma nova perspectiva. Quanto às descrições dos hábitos, estes certamente podem revelar traços do caráter de um povo específico ou de conterrâneos, que revelam a possibilidade de serem tomados como caráter de maior estabilidade.

domingo, 3 de abril de 2011

Repensando a Historicidade em função de uma Historiografia Ancestral

"ANTEPASSADO
Só te conheço de retrato, não te conheço de verdade,
mas teu sangue bole no meu sangue, e sem saber te vivo em mim..."
Carlos Drummond de Andrade
Um livro feito para mim e talvez para outros...
PREFÁCIO
Estou no Vale do Jiquiriçá. Aqui os vivos acreditam que se deve dar lugar à voz dos antepassados. O resguardo da História requer a recolha dos vestígios deixados por nossos antepassados. É bela a colheita desses traços. Um povo não passa por esse mundo without a trace. Ao deixar vestígios e por sua coleta, um povo resguarda o que perece e o que vai perecer: “o Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, o Heróico assassinado em segredo, o que foi marcado de estrelas – tudo quilo que depois de salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu”. Assim escreveu Ariano Suassuna em seu Romance d’A Pedra do Reino. Os vestígios dos meus antepassados podem tornar a se exprimir quando os recolho e deles falo. Os vestígios dos antepassados, não os seus restos, são a alma da historiografia. Os vestígios dos antepassados são sua expressão poiética. É deles que se recolhe e se faz ouvir de novo a expressão histórica de um povo.
Não se pode pensar a expressão histórica de um povo e das várias etnias que o constituíram sem repensar o que é propriamente ser histórico. Não se pode deixar de ver na poesia a expressão de um povo como exposição de sua História. A História mesma de um Povo e o que ela seja tem que ser repensada, de modo que possamos ter uma nova historiografia, para quem não seja mais possível falar de “pré-história”. Onde houver expressão ética e poiética, há História.
Assim, quando os nossos mais remotos antepassados registraram nas paredes de pedra do Sertão do Seridó – e outros tantos Sertões – com o Sol tremendo na vista, ao reluzir nas paragens mais próximas, suas festas, oferendas e caçadas, fizeram isso porque tinham História para contar. Em muitos outros Sertões, nossos antepassados se preocuparam em registrar suas vidas sobre a Terra espinhenta e pedregosa, e suas observações do Céu. Sob a respiração ofegante do Sopro ardente de sua Terra, já eles quiseram “fixar o traço impalpável tanto das nuvens do céu como das sombras e nuvens do caminho que em silêncio envolveram” a breve duração de sua existência sobre a Terra; já eles, os mais remotos ancestrais de quem temos notícia, tentaram “prender com os fios do tempo a efígie de todas as presenças e cravá-las como pedras nos anéis de seu fim, girando a vida eterna na memória”, como diz a poesia de Ângelo Monteiro.
As pinturas de nossos remotos ancestrais, fixadas nas paredes que envolviam seu habitar cotidiano, traziam já as marcas do poético pela obra de suas mãos. Ainda vivas e hábeis, suas mãos fixavam o traço impalpável do tempo de suas vidas, antes que estas se despedissem da existência e tivessem seus corpos devolvidos ao ventre materno da Terra. As pinturas cumpriam a tarefa do poético ao resguardar os vestígios da existência antes de sua despedida. Aliás, como nos assegura a ilustre arqueóloga Gabriela Martin, “foi precisamente nos sertões nordestinos do Brasil, onde a natureza é particularmente hostil à ocupação humana, onde se desenvolveu uma arte rupestre pré-histórica das mais ricas e expressivas do mundo, demonstrando a capacidade de adaptação de numerosos grupos humanos que povoaram a região desde épocas que remontam ao pleistoceno final” (MARTIN, Pré-História do Nordeste, p. 245). Resguardando os vestígios de sua existência através das pinturas rupestres, os nossos antepassados cumpriam outrora como hoje os desígnios de todo labor poético, pois de fato, “prender a onda na praia, antes que a onda caia é a faina da poesia”, como disse Ângelo Monteiro em sua poesia Ondulação.
Mas todo esse preâmbulo, a título de certo até moroso prefácio, quer cumprir apenas uma função: fazer ver o motivo pelo qual importa repensar a historicidade específica em função de uma reconstituição da própria historiografia brasileira. Ora, se já podemos em certo aspecto falar dos vestígios rupestres dos povos mais primitivos que habitaram os Sertões Seridoenses e outros tantos como o resguardo poético de sua existência, como poderemos ficar restritos a escrever nossa historiografia dentro de limites de apenas cinco séculos?
É no mínimo um despropósito desconsiderar que resguardando seus vestígios por seu caráter poiético, até mesmo a existência dos nossos mais remotos antepassados faz História ao dar testemunho de sua História. É ridículo não notar, reconhecer e anotar a historicidade da existência histórica de nossos antepassados. É ridículo falar de pré-história do Brasil sem reconhecer o seu caráter muito mais histórico que pré-histórico. É ridículo mais ainda fazer começar a História do que se tornou “Brasil” unicamente a partir de uma data pela qual se diz ter sido “descoberto o Brasil”, sem se dar conta da luta imensa travada no cuidado, no desfrute dessa Terra e na construção deste Brasil, e de quantos inúmeros povos nela atuaram desde muitos milhares de anos. É ainda falacioso, falso e enganador falar de uma invasão e de tantos mecanismos de exploração com o “brilho” da palavra “descoberta” e da expressão “construção de um país”. Falar da invasão europeia lusitana ao continente das etnias Tupis e Jê como “descoberta” é negar a História e relegar ao esquecimento a Historicidade de nossos antepassados, com muitos traços de caráter e de sangue que ainda insistem em persistir nas mais recentes gerações, e sempre persistirão. E ainda nem estou falando da absurdidade que é ver nos livros didáticos, que instruem nossos filhos, a referência aos resistentes povos, trazidos violentamente da imensa e diversificada África, como “escravos africanos”. É um crime contra o processo abolicionista que necessita ser continuado ainda hoje, esquecer a resistência e a luta quilombola, que é, na verdade, o primeiro e grande responsável por extirpar do nosso Solo a Erva Daninha da Escravidão, e manter viva a verdadeira vida e liberdade da riqueza da vida e cultura dos povos africanos, que está em nossos costumes e sentidos como o sangue está em nossos corpos.