domingo, 3 de abril de 2011

Repensando a Historicidade em função de uma Historiografia Ancestral

"ANTEPASSADO
Só te conheço de retrato, não te conheço de verdade,
mas teu sangue bole no meu sangue, e sem saber te vivo em mim..."
Carlos Drummond de Andrade
Um livro feito para mim e talvez para outros...
PREFÁCIO
Estou no Vale do Jiquiriçá. Aqui os vivos acreditam que se deve dar lugar à voz dos antepassados. O resguardo da História requer a recolha dos vestígios deixados por nossos antepassados. É bela a colheita desses traços. Um povo não passa por esse mundo without a trace. Ao deixar vestígios e por sua coleta, um povo resguarda o que perece e o que vai perecer: “o Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, o Heróico assassinado em segredo, o que foi marcado de estrelas – tudo quilo que depois de salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu”. Assim escreveu Ariano Suassuna em seu Romance d’A Pedra do Reino. Os vestígios dos meus antepassados podem tornar a se exprimir quando os recolho e deles falo. Os vestígios dos antepassados, não os seus restos, são a alma da historiografia. Os vestígios dos antepassados são sua expressão poiética. É deles que se recolhe e se faz ouvir de novo a expressão histórica de um povo.
Não se pode pensar a expressão histórica de um povo e das várias etnias que o constituíram sem repensar o que é propriamente ser histórico. Não se pode deixar de ver na poesia a expressão de um povo como exposição de sua História. A História mesma de um Povo e o que ela seja tem que ser repensada, de modo que possamos ter uma nova historiografia, para quem não seja mais possível falar de “pré-história”. Onde houver expressão ética e poiética, há História.
Assim, quando os nossos mais remotos antepassados registraram nas paredes de pedra do Sertão do Seridó – e outros tantos Sertões – com o Sol tremendo na vista, ao reluzir nas paragens mais próximas, suas festas, oferendas e caçadas, fizeram isso porque tinham História para contar. Em muitos outros Sertões, nossos antepassados se preocuparam em registrar suas vidas sobre a Terra espinhenta e pedregosa, e suas observações do Céu. Sob a respiração ofegante do Sopro ardente de sua Terra, já eles quiseram “fixar o traço impalpável tanto das nuvens do céu como das sombras e nuvens do caminho que em silêncio envolveram” a breve duração de sua existência sobre a Terra; já eles, os mais remotos ancestrais de quem temos notícia, tentaram “prender com os fios do tempo a efígie de todas as presenças e cravá-las como pedras nos anéis de seu fim, girando a vida eterna na memória”, como diz a poesia de Ângelo Monteiro.
As pinturas de nossos remotos ancestrais, fixadas nas paredes que envolviam seu habitar cotidiano, traziam já as marcas do poético pela obra de suas mãos. Ainda vivas e hábeis, suas mãos fixavam o traço impalpável do tempo de suas vidas, antes que estas se despedissem da existência e tivessem seus corpos devolvidos ao ventre materno da Terra. As pinturas cumpriam a tarefa do poético ao resguardar os vestígios da existência antes de sua despedida. Aliás, como nos assegura a ilustre arqueóloga Gabriela Martin, “foi precisamente nos sertões nordestinos do Brasil, onde a natureza é particularmente hostil à ocupação humana, onde se desenvolveu uma arte rupestre pré-histórica das mais ricas e expressivas do mundo, demonstrando a capacidade de adaptação de numerosos grupos humanos que povoaram a região desde épocas que remontam ao pleistoceno final” (MARTIN, Pré-História do Nordeste, p. 245). Resguardando os vestígios de sua existência através das pinturas rupestres, os nossos antepassados cumpriam outrora como hoje os desígnios de todo labor poético, pois de fato, “prender a onda na praia, antes que a onda caia é a faina da poesia”, como disse Ângelo Monteiro em sua poesia Ondulação.
Mas todo esse preâmbulo, a título de certo até moroso prefácio, quer cumprir apenas uma função: fazer ver o motivo pelo qual importa repensar a historicidade específica em função de uma reconstituição da própria historiografia brasileira. Ora, se já podemos em certo aspecto falar dos vestígios rupestres dos povos mais primitivos que habitaram os Sertões Seridoenses e outros tantos como o resguardo poético de sua existência, como poderemos ficar restritos a escrever nossa historiografia dentro de limites de apenas cinco séculos?
É no mínimo um despropósito desconsiderar que resguardando seus vestígios por seu caráter poiético, até mesmo a existência dos nossos mais remotos antepassados faz História ao dar testemunho de sua História. É ridículo não notar, reconhecer e anotar a historicidade da existência histórica de nossos antepassados. É ridículo falar de pré-história do Brasil sem reconhecer o seu caráter muito mais histórico que pré-histórico. É ridículo mais ainda fazer começar a História do que se tornou “Brasil” unicamente a partir de uma data pela qual se diz ter sido “descoberto o Brasil”, sem se dar conta da luta imensa travada no cuidado, no desfrute dessa Terra e na construção deste Brasil, e de quantos inúmeros povos nela atuaram desde muitos milhares de anos. É ainda falacioso, falso e enganador falar de uma invasão e de tantos mecanismos de exploração com o “brilho” da palavra “descoberta” e da expressão “construção de um país”. Falar da invasão europeia lusitana ao continente das etnias Tupis e Jê como “descoberta” é negar a História e relegar ao esquecimento a Historicidade de nossos antepassados, com muitos traços de caráter e de sangue que ainda insistem em persistir nas mais recentes gerações, e sempre persistirão. E ainda nem estou falando da absurdidade que é ver nos livros didáticos, que instruem nossos filhos, a referência aos resistentes povos, trazidos violentamente da imensa e diversificada África, como “escravos africanos”. É um crime contra o processo abolicionista que necessita ser continuado ainda hoje, esquecer a resistência e a luta quilombola, que é, na verdade, o primeiro e grande responsável por extirpar do nosso Solo a Erva Daninha da Escravidão, e manter viva a verdadeira vida e liberdade da riqueza da vida e cultura dos povos africanos, que está em nossos costumes e sentidos como o sangue está em nossos corpos.

Nenhum comentário: