terça-feira, 19 de abril de 2011

Aprendendo com o jeito de ser Tupinambá

No dia dedicado aos antigos povos que habitaram a terra da Ybyrapytã (arabutã, madeira rubra, pau-brasil) nada melhor do que recordar certos traços fundamentais de seu caráter, de seu jeito de ser e ver a vida. Vejamos a autonomia e maturidade dos antigos Tupinambás, através da leitura de alguns trechos do livro de Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil.

O livro de Léry é importantíssimo para uma caracterização bastante ampla dos traços de caráter e da conduta dos Tupinambás. Já a primeira caracterização de Léry dos Tupinambás é de impressionar nos aspectos positivos que se mostram. Para eles, os “chamados Tupinambás” entre os quais residiu “durante quase um ano” e com os quais tratou “familiarmente, não são maiores nem mais gordos que os europeus; são porém mais fortes, ma[i]s robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeito a moléstias” (LÉRY, p. 97). Esta é a primeira caracterização física positiva que Léry enxerga nos Tupinambás. O corpo dos Tupinambás se mostra em sua força, robustez e saúde. Léry continua destacando a longevidade dos Tupinambás, dizendo que muitos deles chegam a 120 anos e acentuando uma característica corpórea que me chamou a atenção pelo fato de Léry atrelá-la a um aspecto do caráter dos Tupinambás: diz que por mais que muitos alcancem uma idade tão avançada, em sua velhice não se mostram “os cabelos brancos ou grisalhos, o que demonstra não só o clima da terra... mas ainda que pouco se preocupam com as coisas deste mundo” (LÉRY, p. 97). Léry revela que os Tupinambás não manifestam em sua vida silvícola as preocupações características que ele nota nos citadinos: aos Tupinambás não advêm as perturbações oriundas da “desconfiança” e da “avareza”, dos “processos e intrigas”, da “inveja” e da “ambição” e assegura: “Nada disso tudo os inquieta e menos ainda os apaixona e domina” (ibidem).  Estes são de fato traços do caráter extremamente positivos para a saúde do corpo e do psiquismo; é curioso que Léry os enxergue nos Tupinambás, e é importante que os tenhamos em vista na busca de requisitar os vestígios deixados por nossos antepassados. Que um povo viva sem desconfiança, avareza, processos, intrigas, inveja e ambição é um fenômeno que no mínimo deve nos chamar a atenção e até encher de espanto. O que os fazia assim? Retornam em nós, seus remanescentes, ao menos de modo escondido, os traços vivos desse caráter? Ou fomos tomados pela doentia cultura citadina que nos faz mergulhar em todos esses rudes sentimentos até que nos afoguemos todo neles? Como os Tupinambás conseguiam se ver livres da inquietude desses sentimentos? Como não se deixavam encher de paixão por esses sentimentos e como estavam imunes de serem dominados por tais sentimentos? Como esta imunidade se mantinha tão viva em seu caráter e como suas relações na lida com as coisas de seu mundo o no trato com os outros impedia que tais sentimentos viessem à tona? Procuremos ver se o restante das caracterizações de Léry nos podem apresentar respostas correspondentes a esse inquérito.
A)     Nudez sem Vergonha

Léry descreve com espanto a nudez dos Tupinambás. “Coisa não menos estranha e difícil de crer, para os que não os viram”, diz ele como quem falasse para nós próprios os pósteros que não viram nem hão de ver os Tupinambás, “é que andam todos, homens, mulheres e crianças, nus como ao saírem do ventre materno” (LÉRY, p. 98). E assegura ainda outra falta (stéresis) no jeito de sentir-se próprio dos Tupinambás, de modo não menos digno de espanto, pois esses nossos ancestrais “não só não ocultam nenhuma parte do corpo, mas ainda não dão o menor sinal de pudor ou vergonha” (LÉRY, p. 98). Vivendo nus, todos, não estavam sujeitos a sentir pudor ou vergonha por causa disso. Sentiam-se livres desses sentimentos estando nus. Este fenômeno é também curioso, mesmo para nós, seus remanescentes, os que não os vimos e não os haveremos de ver. Tem esse fenômeno algo a nos dizer?

B)     Irreligiosidade e Utopia
Um aspecto curioso, que do meu ponto de vista revela uma maturidade humana extremamente elevada presente na mentalidade dos Tupinambás, é o caráter de irreligiosidade ou mesmo ateísmo própria dos Tupinambás. Léry afirma tacitamente que os Tupinambás “não adoram quaisquer divindades terrestres ou celestes” (LÉRY, p. 175). Léry torna claro com essa afirmação um caráter próprio da experiência religiosa que ele não via presente nos Tupinambás: o caráter da adoração a uma ou mais divindades. Ora, ele não fala simplesmente da ausência de uma crença monoteísta deste povo, mas mesmo da inexistência de qualquer sentimento de adoração a divindades, celeste ou terrestre, por parte dos Tupinambás. A maturidade no que diz respeito à crença em deuses se revela de maneira ainda mais clara quando julgam, em uma determinada conversa que tiveram com Léry, o desvalio do próprio deus a quem o calvinista prega. Sendo extremamente temerosos do trovão, como um fenômeno natural que os aterrorizava, pois, como testemunha Léry, “quando ouvem o trovão são levados por uma força irresistível a temê-lo” (LÉRY, p. 179), um Tupinambá manifesta com veemência que se este deus criou o trovão, não valia nada. De fato,  Léry nos fornece o seguinte testemunho: “E quando ribombava o trovão e nos valíamos da oportunidade para afirmar-lhes que era Deus quem assim fazia tremer o céu e a terra a fim de mostrar sua grandeza e seu poder, logo respondiam que se precisava intimidar-nos não valia nada” (LÉRY, p. 176, grifo meu). É muito importante pensar nesta sentença. Ela revela primeiro: 1) o sentimento do temor pelo trovão, a quem chamavam Tupã; 2) revela em segundo lugar como o Tupinambá considerava mau este sentimento, a ponto de considerar alguém que dele se utilizasse como quem não vale nada; 3) a busca de compreensão parte da experiência fática própria, sem dar vazões a uma compreensão alheia que lhes parecesse ingênua ou, até mesmo, falsa. De fato a crença naquele alguém mítico de quem falava o nobre calvinista, exigia um compromisso deste deus para com os sentimentos mais humanos de que os Tupinambás tinham plena consciência. O mesmo acontecia quando diante de uma forte tribulação por que se viam sempre aterrorizados, eles prometiam crer nesse deus anunciado pelo calvinista francês, desde que pudesse afastar deles o maldito mateiro que lhes aterrorizava o ânimo. Léry interpreta-o como o diabo, e expõe que os Tupinambás acreditavam que “as almas dos covardes vão ter com Ainhã [gênio mal], o nome do diabo, que as atormenta sem cessar” (LÉRY, p. 177). A esta exposição Léry acrescenta o seguinte: “Cumpre notar que essa pobre gente é afligida durante a vida por esse espírito maligno a que também chamam Kaagerre [o morador do mato, o mateiro, o silvestre]” (LÉRY, p. 177); mas uma interpretação mais fina, talvez de caráter mais psicológico ou psicanalítico, pode levar a uma caracterização mais precisa dessa situação de terror na qual se viam mantidos vez por outra os Tupinambás. Pode-se compreender o Ainhã como um ânimo maligno e perturbador, talvez personificado sob esse nome Kaagerre como o morador do mato.
Esse sentimento de mundo dos Tupinambás é curioso e, a meu ver, extremamente maduro. Eles acreditavam que “depois da morte”, aqueles “que viveram dentro das normas consideradas certas, que são as de matarem e comerem muitos inimigos, vão para além das altas montanhas dançar em lindos jardins com as almas dos seus avós” (LÉRY, p. 177). Quando falo de maturidade, não falo do preceito em si, que me parece um exagero de Léry, mas da expectativa dos Tupinambás. Longe de mim acreditar que pudesse parecer madura uma gente que tivesse por único preceito de vida plena matar e comer seus inimigos, exceto, talvez, se recordarmos que em situação de extremo desespero e luta em defesa da vida de seus concidadãos, este lema a que Léry chama preceito pode ser muito comum, ainda que me pareça extremamente danoso do ponto de vista humano. Verdade, porém, é que segundo Léry, o motivo fundamental era vingança, e não propriamente defesa da própria vida. Será que poderíamos acrescentar aqui a hipótese de que um dos motivos fundamentais fosse um encorajamento à luta pela sobrevivência. O que não posso perder de vista é a esperança dos Tupinambás: viver para além das altas montanhas, a dançar em lindos jardins na companhia de seus antepassados. Este elemento de maturidade não é percebido em geral. Mas para entender o sentimento Tupinambá e em função de que pareciam insistir tanto na luta contra os inimigos no horizonte da antropofagia, é preciso ter em conta o caráter da luta pela sobrevivência em suas terras e da esperança que possuíam, ainda que certamente dever-se-á considerar o sentimento de vingança atestado por Léry, como motivo expresso pelos próprios Tupinambás. Vale lembrar que não é o mesmo de uma luta pela dominação, muito própria de civilizações imperialistas, mas pela salvaguarda de sua própria vida, especialmente à época ameaçadora da colonização, que pode ter acirrado os conflitos motivados pela vingança contra os inimigos. Importa lembrar que quando da visita de Jean de Léry já se haviam passados mais de cinquenta anos do processo de invasão e colonização, que certamente fez acender ou mesmo reacender e acirrar as possíveis inimizades já existentes entre os povos dessa terra, certamente como fruto de uma luta pela sobrevivência. Espero não estar sendo ingênuo com essa caracterização, mas é preciso fazer um estudo mais aprofundado dos motivos das inimizades então existentes à época da convivência de Léry com os Tupinambás. É preciso tentar perceber melhor quem eram considerados inimigos pelos Tupinambás e por que eram assim considerados. Vejo que a descrição de Léry não fornece dados suficientes para responder a essa questão, mas, talvez, pode apontar pistas para possíveis hipóteses. É preciso de fato buscar os motivos das ocasionais condutas antropofágicas, difícil de compreender por nossa cultura contemporânea. Mas trata-se de uma questão que não pode ficar de fora.
C)     Escuta ao dizer alheio
Há uma curiosa disposição do caráter: Léry assegura mais de uma vez que “os selvagens não costumam interromper os discursos de ninguém; por isso me ouviram atentos pelo espaço de meia hora proferindo apenas de quando em quando sua habitual interjeição: Teh.” (LÉRY, p. 187).  Isso nos revela que os Tupinambás mostravam-se extremamente curiosos e atentos. Essa disposição do caráter é fundamental para perceber o sentimento de respeito pela alteridade que tinham os Tupinambás. Ouvir o outro é de fato uma característica fundamental da existência humana que se mantém aberta ao outro.

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