domingo, 17 de abril de 2011

Historiografia Ancestral, Historicidade e Fecundidade da Memória

"... uma tradição ... é... o poder de esquecer as origens e de dar ao passado, não uma sobrevida, que é a forma hipócrita do esquecimento, mas sim uma nova vida, que é a forma nobre da memória."
Maurice Merleau-Ponty

A cultura tem um poder: o de retomar o que tem sido e se tornar advento criador da experiência livre de um trabalho humano, onde vigoram suas origens mais ancestrais. Pode a Historiografia chegar a instaurar essa mesma possibilidade? Será que podemos de fato falar de uma Historiografia Ancestral, que em vez de ser a simples coleta museológica de fatos do passado, faça acordar o presente para uma reconciliação pela compreensão com as origens ancestrais que pulsam em suas veias? Qual seria a diferença fundamental entre uma Historiografia Oficial, difundida, aceita e celebrada em um país, e uma Historiografia Ancestral? É uma mera consideração e exposição de outros fatos que não são trabalhados pela Historiografia Oficial?

É com certa desconfiança que a tradição filosófica pós-hegeliana vê a Historiografia como possibilidade de pensar e considerar o propriamente histórico da existência humana, o componente de sua verdadeira existência ética. De fato, já Hegel criticara em sua Fenomenologia do Espírito a postura mais comum ao labor historiográfico que se reduz à mera transmissão dos fatos do passado e suas obras, que são meros frutos de um trabalho verdadeiramente vivo e ativo da existência humana. Para Hegel, a ação do trabalho historiográfico se tornaria muitas vezes puramente exterior, na medida em que este labor se constituiria apenas no "agir externo que limpa esses frutos [que o destino nos entrega] de algumas gotas de chuva ou grãos de areia; em lugar dos elementos da efetividade do ético que os rodeia, engendra e vivifica, constrói uma prolixa armação dos elementos mortos da existência externa - da linguagem, do histórico etc. - não para adentrá-los, experimentando-lhes a vida, mas somente para representá-los dentro de si" (HEGEL, (1973 [1807], p. 415). Desse modo, a Historiografia não promoveria a autêntica "recordação do espírito", a qual implicaria em um verdadeiro reviver no íntimo (Er-innerung) a vida ética da existência no próprio lida atual. 

Nessa mesma direção, mas talvez aprofundando-a e superando-a de certo modo, a Filosofia Existencial de Sören Kierkegaard deixará de falar dessa tentativa de recuperação da memória do passado pela vida, e passará a tornar decisivo na Filosofia o conceito de re-petição ou retomada (Gjentagelsen em dinamarquês, ou Wiederholung de acordo com a versão alemã do termo). Na verdade o termo parece implicar muito mais o sentido de revisão ou melhor ainda colocar em dia o que já foi visto ou mais propriamente vivido. Trata-se de atualizar-se, colocar em dia o que de algum modo nos escapou. Penso que este é o sentido mais apropriado da expressão. Kierkegaard assevera que o conceito de repetição ou retomada "é uma expressão decisiva para aquilo que para os gregos era a 'recordação'." E acrescenta: "Como eles nomeadamente ensinavam que todo conhecimento é recordação, a nova filosofia ensinará que toda filosofia é uma retomada" (ou repetição, revisão, colocação em dia do que de algum modo já se deu, mas nos passou despercebido) (KIERKEGAARD, 2000, p. 3). Atualizar-se e colocar-se em dia com os acontecimentos no presente é justamente o que chamamos de recuperar-se em sua historicidade. Será que podemos esperar isso de uma Historiografia Ancestral? 

É possível declarar que Hegel tinha razão em sua crítica à historiografia. Após Kierkegaard, que o faz de modo implícito, tanto Friedrich Nietzsche quanto Martin Heidegger, ainda que de maneiras diferentes, mas de modo explícito procurarão aprofundar essa mesma crítica (cf. NIETZSCHE, 1994, p. 154-242; HEIDEGGER, 2001, 392-404). Frei Carlos Mesters resume de maneira simples os motivos dessa crítica:

A influência da mentalidade científica, aplicada na investigação histórica, levou os historiadores a buscarem uma precisão maior na descrição dos contornos exatos e materiais dos fatos do passado. Ora, quem começa a estudar o seu passado coloca esse passado diante de si, como algo distinto de si mesmo. Ele toma uma certa distância para poder observá-lo. Psicologicamente, surge assim uma separação entre aquele que estuda o passado e o passado que é estudado. Surge, na pessoa que faz esse estudo, uma distinção entre o presente e o passado. O passado torna-se objeto de investigação, é objetivado, e se distingue do sujeito que o investiga e ao qual pertence o passado. (MESTERS, 1999, p. 48-49)

Ora, a objetivação do passado operada pela historiografia leva a um distanciamento que torna de fato impossível pensar a historicidade da existência. Uma Historiografia Ancestral precisa ter em conta esse problema da objetivação do passado, se pretende justamente levar a existência a recuperar-se em sua historicidade.

Assim, importa elaborar o seguinte problema, com base na epígrafe desta postagem: como dar ao passado, através da Historiografia Ancestral, não uma sobrevida, que é a forma hipócrita do esquecimento, mas sim uma nova vida, que é a forma nobre da memória? 

Uma primeira coisa deve ser dita: Uma Historiografia Ancestral que pretenda superar esse problema no Brasil, não pode simplesmente equivaler-se ao método da Historiografia Oficial. A mera coleta dos fatos do passado dos povos nativos errantes, dos nautas arremessados e dos africanos escravizados e exilados nestas terras e a mera exposição dos mesmos no presente é insuficiente para uma autêntica Historiografia Ancestral.

Merleau-Ponty diz que "Husserl empregou o belo termo Stiftung - fundação ou estabelecimento - para designar... sobretudo a fecundidade dos produtos da cultura que continuam a valer depois de seu aparecimento e abrem um campo de pesquisas em que revivem perpetuamente" (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 90). Ora, a fundação ou estabelecimento da cultura por um povo é o elemento vital no qual vive o próprio antepassado. A cultura não é um conjunto de elementos mortos; é a expressão da vida vivida e do trabalho de um povo que se enraiza no passado e se projeta no futuro.

Sítio Xique-Xique IV - Seridó-RN

"Os primeiros desenhos nas paredes das cavernas", tais como a pintura acima e as muitas presentes nos diversos sítios rupestres em todo o Nordeste do Brasil, "apresentavam o mundo como 'por pintar' ou 'por desenhar', chamavam um futuro indefinido da pintura, e é isso que faz com que nos falem e com que lhes respondamos por metáforas em que colaboraram conosco" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 91). Este chamamento de um futuro indefinido se recolhe nos vestígios do passado e se refletem em nossa atualidade. daí que a interpretação de si como histórico implica a retomada dos vestígios do passado, mas justamente na medida em que se pode perseguir os reflexos na experiência de quem os recolhe no presente. Retomada e repercussão dos vestígios do passado no presente projetivo, ativo e atualizador, é o primeiro momento de uma Historiografia Ancestral que não pretenda esquecer sua Historicidade em jogo. Fala em nós do passado algo que clama por uma reapropriação da vida, e da qual o presente se mantém esquecido? Como se restabelece esse elemento? Como tornar transparente para si mesmo o elemento de filiação e herança próprios de um pensamento e sentimento ancestrais? Através de quem esta filiação se mostra no presente? A quem recorrer para compreendê-lo?

É preciso recuperar a memória. Este é um caminho. Pois há na memória uma fecundidade. Como dizia ainda o Teólogo e Hermenêuta Carlos Mesters: "A memória conserva o passado não como coisa do passado, mas como força viva e ativa que faz o presente caminhar para o futuro. O verdadeiro passado não ficou no passado. Está nos alicerces do presente, atrás dos olhos que hoje enfrentam o futuro" (MESTERS, 1991, p. 160-161).

REFERÊNCIAS

HEGEL, G. W. F. Phenomenologie des Geistes.

HEIDEGGER, M. Sein und Zeit.

KIERKEGAARD, S. Die Wiederholung.

MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito.

MESTERS, C. Flor sem Defesa.

MESTERS, C. Por trás das Palavras.

NIETZSCHE, F. Von Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben.

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