sexta-feira, 15 de abril de 2011

A Resistência Uetacá

Em um primeiro momento de recolha de alguns vestígios de povos antepassados, resolvi apresentar aqui a figura de um povo, nem sempre difundida, que não cedeu aos processos de colonização. Quando estudamos História do Brasil na escola, nem sempre aprendemos que o processo de invasão e colonização não foi um processo pacífico e, por outro lado, também não somos levados ao conhecimento de que alguns povos nunca admitiram contato com o estrangeiro europeu, e por isso foram caracterizados como bárbaros e ferozes. Isto é o que se deixa atestar pela descrição de Jean de Léry: um calvinista francês que, tendo vindo ao Brasil e vivido entre os Tupinambás no litoral do estado que hoje chamamos Rio de Janeiro, região do Rio Guanabara para os Tupinambás, escreveu-nos um relato de sua viagem e sua estadia de um ano entre os Tupinambás. Ele esteve no Brasil em 1557, e publicou seu livro Viagem à Terra do Brasil em 1578 na França,  livro que foi reeditado por Paul Gaffarel na França em 1878. Aproveito a oportunidade para registrar meu sincero agradecimento à Biblioteca do Colégio Estadual Santa Bernadete, que foi muito gentil em ceder-me um exemplar do livro de Léry para a minha pesquisa.
Os Uetacá, que viviam entre às margens do Rio Paraíba do Sul e do Rio Macaé, são descritos por Jean de Léry como “índios tão ferozes que não podem viver em paz com os outros e se acham sempre em guerra aberta, não só contra os vizinhos, mas ainda contra todos os estrangeiros” (LÉRY, 1967 [1578,1878], p. 70). Vale salientar que, nesta época (1557) os Margaiá (ou Tupiniquins) já haviam se aliado aos Potugueses, e os Tupinambás (que chamavam os portugueses de Perô-angaipá, que significa portugueses maus,, ruins, desalmados, cruéis) tinham se tornado aliados dos Franceses. Jean de Léry não atenta para a situação circunstancial dos Uetacá quando os caracteriza como ferozes e fala de sua impossibilidade de viver em paz com seus vizinhos. Não podemos garantir, mas é possível conjecturar que a inimizade com os vizinhos (se é que havia antes da invasão e colonização européia) pode muito bem ter se acirrado em função das alianças estabelecidas pelos Tupinambás e pelos Margaiás. Sua ferocidade é certamente muito mais um signo de resistência do que de barbarismo selvagem, como Léry apresentou.
Jean de Léry acrescenta, de maneira mais detalhada ainda,  ampliando sua descrição, que:

Quando apertados e perseguidos por seus inimigos, os quais entretanto, nunca os puderam vencer ou domar, correm tão rápidos a pé que não só escapam da morte como apanham na carreira certos animais silvestres, veados e corsas. Andam nus como todos os brasileiros e usam cabelos compridos e pendentes até as nádegas (LÉRY, 1967 [1578,1878], p. 70).
  
          Jean de Léry diz serem os “Uetacá invencíveis nessa região” e também praticantes da antropofagia, e acrescenta ainda que eram “donos de uma linguagem que seus vizinhos não entendem” (LÉRY, 1967, p. 70). Léry procura em sua descrição retratar os Uetacá como “os mais cruéis e terríveis” que se podiam encontrar por essas terras. Chama-os de “diabólicos” e caracteriza sua antropofagia dizendo que são “comedores de carne humana, como cães e lobos” (LÉRY, 1967, p. 70), parecendo também referir-se aos Uetacá quando mais à frente em uma comparação refere-se “à maneira dos selvagens guaitaká[1], que mastigam e engolem a carne crua” (LÉRY, 1967, p. 82). É preciso, porém, colocar entre parênteses essa descrição, uma vez que, diante das circunstâncias do início da colonização, isso que está sendo chamado de conduta terrível, diabólica, cruel, animalesca e indomável, pode ser muito mais, na verdade, um signo da resistência dos Uetacá, que não se deixaram enganar e dominar, ainda que a antropofagia ritual seja um costume dos povos nativos dessas nossas terras ancestrais, a maneira grotesca apresentada pelos Uetacá pode exprimir uma revolta violenta diante da situação em que se encontram.
            Em notas do livro de Jean de Léry, Plínio Ayrosa caracteriza os Uetacá como um povo que foi considerado famoso “pela rusticidade de costumes e pela crueldade com que tratavam seus inimigos” (AYROSA, in LÉRY, 1967, p. 70, nota 118), insistindo que a conduta que tornou os Uetacá famosos entre os invasores era aquela que estes chamavam de “crueldade”. Em que sentido histórico-contextual, porém, esta “crueldade” pôde ser caracterizada não é algo que venha à tona na mente dos invasores. Parece que nunca conseguiram se questionar: Por que os Uetacá estão se mostrando perante nós tão cruelmente? Foram eles sempre assim? Será que essa crueldade não era também uma conduta circunstancial da experiência de vida dos Uetacá? Certamente essa pergunta tende a ficar sem resposta. Ninguém sabia sua língua, ao que parece, pela descrição de Léry, nem mesmo os povos seus vizinhos. Como conquistar a autêntica auto-interpretação de sua vida fática sem poder comunicar-se com eles? Eles não permitiram aproximação estranha. Os motivos ficaram calados no silêncio histórico sobre seus motivos. Será possível pelo menos pensa-los de outro modo, isto é, como signo de resistência? Designar a experiência dos Uetacá como sinal de resistência é uma outra possibilidade de auto-interpretação de nossa historicidade ancestral.
            Plínio Ayrosa oferece-nos outras indicações a respeito dos Uetacá. Diz que eles “eram de avantajada estatura e muito destros no manejo do arco” e que, “do ponto de vista linguístico, ao lado de várias outras tribos, são incluídos no grupo – Línguas Isoladas” (AYROSA, in LÉRY, 1967, n. 118, p. 70).

REFERÊNCIAS

LÉRY, Jean de [1967 (1578, 1878)]. Viagem à terra do Brasil, trad. Sérgio Millet. 4 ed. São Paulo: Martins, 1967.




[1] De fato, de acordo com o “Esquema da situação geográfica das grandes ‘nações’ tupi-guaranis do litoral brasileiro desde a barra do rio São Francisco à baía da Cananéia em meados do séc. XVI”, Plínio Ayrosa apresenta como nomenclatura sinonímica de Uetaká, também os termos Guataká e Guaitaká (cf. AYROSA, in LÉRY, p. 263)

Um comentário:

Anônimo disse...

A expressão "pode se" encerra todo esse texto,impossivel fazer essa conjecturas,ainda mais claramente dando esse contexto heroico, e sabido por varios livros do tipo "diarios de bordo" como o do capitão Cook , diversos tipos de comportamentos,incluso desses tipos ai,como qdo ele chega na islandia e o povo simplismente fa guerra a ele o tempo todo,mesmo depois que fazem trocas,perseguem ,xingam. A nossa dominação sobre eles continua inclusive agora qdo damos esses contextos heroicos,alias justamente agora que não podem mais resistir,fazer um texto do tipo deste, com essas atribuições "modernas" são nosso ultimo ato pra canibalizar eles barbaramente,o que não acho ruim entenda...